O feminismo só faz sentido se for antirracista

por Carla Viana[1]

Imagem: YouTube, elDiarioes.

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras”, disse a filósofa ativista Angela Davis em um encontro internacional sobre feminismo negro e decolonial em Cachoeira/BA. Se queremos falar sobre feminismo, precisamos, necessária e obrigatoriamente, falar sobre racismo e sobre qual é o nosso papel como cidadãs(ãos) na luta antirracista – independentemente de qual seja a sua raça, cor, religião, etnia.

Recentemente, o reality show Big Brother Brasil – programa de maior audiência e exibido na, também, maior emissora da América Latina – foi palco para um episódio de racismo estrutural. Um dos participantes comparou o cabelo afro de outro participante a uma peruca de “homem das cavernas”.

É claro que a comparação, por si só, já foi deveras desagradável. Mas o ponto que realmente chamou a minha atenção foi a sequência de justificativas apresentadas pelo participante quando confrontado acerca de seu comentário discriminatório.

“Se você olhar bem, vai ver que parece mesmo”; “eu não queria ofender ninguém”; “foi apenas uma brincadeira”; “o cabelo do meu pai também é assim”; “o meu cabelo também não é lá essas coisas”… Entre muitos outros.

A tentativa de justificar o injustificável racismo estrutural como sendo apenas uma “brincadeira” ou alegando suposto “desconhecimento” é estratégia bem antiga e, por muito tempo, infelizmente funcionou. Tanto que, neste caso, e apesar de termos avançado muito no debate sobre discriminação, racismo e preconceito, o participante ofendido foi massacrado por milhares de pessoas nas redes sociais, acusado de “vitimismo” e de ser “oportunista”.

E é justamente nesse tipo de comportamento negacionista sobre as questões raciais que se desenvolve o racismo estrutural, de modo que

“o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. […] o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática. Ainda que os indivíduos que cometam atos racistas sejam responsabilizados, o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial.”[2] (grifo próprio)

Ou seja, é muito importante compreendermos que o racismo não se reduz aos crimes previstos na Lei Caó, n.º 7.716/1989, a qual define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e suas respectivas penas, ou mesmo na previsão constitucional sobre o tema. Muito pelo contrário, o Brasil foi literalmente construído pelas mãos de pessoas escravizadas por quase 400 anos e nós sequer somos ensinados na escola, por exemplo, sobre essa parte tão fundamental da nossa história com a devida profundidade e seriedade que o assunto merece.

O Brasil foi edificado através do racismo e das desigualdades raciais e, por isso, todos os brancos, indistintamente e de forma intencional ou não, são naturalmente racistas simplesmente porque foram privilegiados e beneficiados historicamente em decorrência do racismo e da opressão sobre a população negra. Djamila Ribeiro[3] melhor explica que “no Brasil, há a ideia de que a escravidão aqui foi mais branda do que em outros lugares, o que nos impede de entender como o sistema escravocrata ainda impacta a forma como a sociedade se organiza.”

Essa perspectiva é extremamente importante para compreendermos que o fim do período escravista, por si só, não foi suficiente para garantir a igualdade de direitos e o acesso aos mais variados espaços às pessoas pretas – estas que, vale lembrar, a partir da abolição, viram-se sem acesso à terra, às suas origens, à sua religiosidade, ao trabalho, ao estudo, à sua própria família e, principalmente, a uma vida com dignidade e respeito.

E é por isso que Silvio Almeida nos ensina, ainda, que:

“Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça o indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.”[4] (grifo próprio)

     Romper com o silêncio diante de situações de preconceito e discriminação é salutar para construirmos uma sociedade justa e sem violência, mas não apenas isso: é preciso reconhecer que os reflexos da escravidão permanecem latentes em nossa sociedade até os dias atuais e isso não é opinião, quem diz são as evidências.

Pesquisas recentes indicam, por exemplo, que a taxa de desocupação (desemprego) de pessoas pretas foi 71,2% maior do que de pessoas brancas e, segundo a análise por gênero, as mulheres seguem sendo as mais afetadas pela falta de trabalho.[5] Além disso, negros são maioria nos postos de trabalho informais – ou seja, sem qualquer segurança ou garantia prevista na legislação trabalhista – e, mais uma vez, o recorte por gênero demonstra que durante a pandemia as mulheres (principalmente as mulheres pretas) foram as mais afetadas, visto que a “desigualdade de gênero e raça que já estava formada antes da crise, se acentua com a pandemia porque afeta de forma diferenciada os grupos que já eram marcados pela vulnerabilidade.”[6]

Do ponto de vista de violência, podemos citar o recente estudo denominado “Monitor da Violência”[7] realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que aponta um aumento no número de feminicídios no ano de 2020, sendo que 73% das vítimas são, novamente, as mulheres negras.

Além disso, foi identificada também uma queda no número de denúncias relacionadas aos delitos de lesão corporal dolosa e estupro – crimes que exigem o comparecimento da vítima na Delegacia para realizar o Boletim de Ocorrência. Importante compreendermos que essa redução de denúncias não significa menos violência, mas sim que as mulheres estão enfrentando maiores dificuldades para denunciar, principalmente sob a perspectiva racial, já que a pesquisa indica (também) que as mulheres brancas têm mais acesso aos canais de denúncia do que as mulheres negras.

Ainda falando sobre os problemas acentuados pela pandemia, recente estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), mais de 116 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar.[8] O inquérito da Penssan mostra que a fome atingiu 11,1% das casas chefiadas por mulheres e 7,7% nas casas chefiadas por homens.  A diferença na segurança alimentar entre os gêneros também é grande: nas casas com mãe solo, 35,9% das famílias têm a alimentação garantida, já no caso dos homens são mais que a metade, 52,5%. E veja só: quando a pessoa de referência nas residências é negra, a fome está presente em 10,7% das casas, enquanto esse número cai para 7,5% se a pessoa de referência for branca.

E adivinhe quem foram as pessoas menos vacinadas contra o coronavírus apesar de sua taxa de mortalidade ser maior? Sim, o Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas do que pessoas negras.[9]

Em suma, todos os cenários estruturais da sociedade, seja na conjuntura política, econômica, social, cultural, educacional, profissional ou qualquer outra, sempre são mais desfavoráveis e prejudiciais para a população preta – e isso não é mera coincidência. As mulheres negras, principalmente, ocupam a base da pirâmide social e são afetadas por diversos marcadores sociais da desigualdade.

Mas o que isso significa, de forma prática?

Significa dizer que determinados grupos sofrem mais de um tipo de opressão e, em decorrência disso, saem em completa desvantagem de oportunidades se comparadas com outras pessoas menos afetadas por esses marcadores sociais. Por exemplo, a mulher negra não é afetada somente pela questão de gênero tal como acontece com a mulher branca; ela também é afetada pelas questões de raça e classe, que fomentam desigualdades e colocam-nas em maior desvantagem se comparado às mulheres brancas (e, é claro, aos homens).

Analisar sob essa perspectiva de múltiplos marcadores sociais da desigualdade e das diferentes realidades que permeiam a vida das mulheres é o que a literatura e as evidências científicas denominam de interseccionalidade. Patricia Hill Collins[10] explica que a “interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe e gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente.” Ou seja, essas categorias “se sobrepõem e funcionam de maneira unificada”, de modo que não há a menor possibilidade de falarmos sobre feminismo e igualdade de gênero sem considerarmos cada uma dessas categorias através da ótica interseccional.

É preciso compreender que antes de pensarmos em igualdade entre homens e mulheres, precisamos garantir igualdade entre mulheres e… Mulheres! E isso só será possível se compreendermos, de fato, que não há como dissociarmos as questões de gênero, raça e classe; o feminismo tem o objetivo e a obrigação de ser inclusivo e observar as particularidades e necessidades de cada uma das mulheres que compõem a sociedade: mulheres brancas, pretas, indígenas, com deficiência, transvestigeneres, de zonas rurais e ribeirinhas, imigrantes, enfim, todas as mulheres e suas múltiplas histórias.

O feminismo, portanto, só faz sentido se for antirracista.

Mas conhecer a nossa história não é suficiente para realizarmos uma mudança categórica: é necessário adotarmos, sobretudo, uma postura ativamente antirracista. E se você (ainda) não sabe o que isso significa ou mesmo como aplicar o antirracismo na prática, compartilho, a partir de agora, 5 lições valiosíssimas ensinadas por Djamila Ribeiro em sua obra “Pequeno Manual Antirracista”, livro vencedor do Prêmio Jabuti no ano de 2020, na categoria de “ciências humanas”.

Imagem: Reprodução do Instagram; @djamilaribeiro1.

1. Informe-se sobre o racismo: “reconhecer o racismo é a melhor forma de combatê-lo”, portanto, não tenha medo de falar sobre o tema, usar expressões como “racismo”, “racista”, e, principalmente, busque conhecer a história a partir da literatura escrita por estudiosas negras(os). Não espere que alguém pegue na sua mãe e lhe ensine; tenha iniciativa e busque por conhecimento.

2. Reconheça os privilégios da branquitude: a população negra representa 56% do país, porém são minoria em todos os espaços de poder – e maioria no sistema carcerário… Você acha que isso é apenas uma coincidência? É claro que não. Pessoas brancas se beneficiaram historicamente da opressão sobre outros grupos e reconhecer tais privilégios é de suma importância para nos responsabilizarmos e agirmos com efetividade.

3. Apoie políticas educacionais afirmativas: o racismo estrutural dificulta o acesso de pessoas negras a uma educação de qualidade – e, consequentemente, à possibilidade de construir uma vida com mais dignidade e conforto. Durante mais de 400 anos da história do Brasil, as pessoas negras sequer tinham acesso à escola, quiçá às universidades! Essa desvantagem secular se reflete até hoje e as políticas educacionais afirmativas têm o objetivo de reparar (tanto quanto seja possível) tamanha desigualdade, possibilitando que todos tenha (ao menos em teoria) as mesmas oportunidades. Cota racial não é favor; é obrigação para reparar o genocídio histórico.

4. Leia autores negros: Djamila diz que “o apagamento da produção e dos saberes negros e anticoloniais contribui significativamente para a pobreza do debate público, seja na academia, na mídia ou em palanques políticos. Se somos a maioria da população, nossas elaborações devem ser lidas, debatidas e citadas.” Se você quer conhecer a história como ela, de fato, aconteceu, procure se informar a partir de intelectuais negros, tais como Abdias do Nascimento, Angela Davis, Audre Lorde, bell hooks, Carla Akotirene, Conceição Evaristo, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Toni Morrison, a própria Djamila Ribeiro, enfim… O que não nos falta é fonte de pesquisa! Leia autores negros. Leia sempre que possível.

5. Combata a violência racial: tanto a maioria da população carcerária quanto a maioria das vítimas de violência policial são as pessoas negras; ou seja, para além de tudo que já vimos até aqui, há ainda uma massiva violência institucional contra o povo preto. Precisamos refletir criticamente sobre todas essas consequências decorrentes do racismo estrutural e, a partir dessa reflexão, adotarmos uma postura combativa que não tolera, em hipótese alguma, a violência racial. Calar-se diante de uma situação de injustiça não é ser neutro ou pacífico, é ser injusto, conivente e, não raramente, cúmplice.

Sejamos melhores.

Se você é uma pessoa branca disposta a fazer a diferença, coloque-se no lugar de escuta em vez de querer ocupar (mais) lugares de fala. Falar menos e ouvir/aprender mais é o único caminho possível para compreendermos as complexas estruturas (racistas) que sustentam a nossa sociedade, a fim de finalmente modificá-las.


[1] Advogada especialista em Direitos das Mulheres, pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Aplicados e em Direito Público, pesquisadora em ciências da educação pelo Instituto Federal de Minas Gerais e coordenadora do Núcleo de Estudos Avançados sobre “Gênero e Violência” da LAJUMG (PUC-MG). Feminista ativista pelos direitos das mulheres e de pessoas em situação de vulnerabilidade. E-mail: carla.viana@adv.oabsp.org.br. Site: carlaviana.info. Instagram: @carlaviana_adv.

[2] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020, p. 50-51.

[3] RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 11-12.

[4] Ibdem, p. 52.

[5] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 2020. Disponível em: bit.ly/2QfQgoY.

[6] Gênero e Número. Na pandemia, mulheres ficam mais vulneráveis e são maioria entre desempregados. 2021. Disponível em: bit.ly/3t8i9hk.

[7] NEV e FBSP. Monitor da Violência, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3s0iilK.

[8] “Na insegurança alimentar leve, há preocupação ou incerteza quanto acesso aos alimentos no futuro e qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam a não comprometer a quantidade de alimentos. Na insegurança alimentar moderada, há redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos. Já na insegurança alimentar grave, há redução quantitativa severa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.” IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Segurança Alimentar, 2013. Disponível em: bit.ly/2PR6WDB.

[9] Agência Pública. Brasil registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas do que negras. 2021. Disponível em: bit.ly/3s32VsV

[10] COLLINS, Patricia Hill. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 15-16.

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