Aborto legal: considerações e apontamentos necessários.

por Carla Viana[1]

Ao longo da última semana, o Brasil foi palco de vasta discussão diante do caso de uma menina de 10 anos brutalmente violentada sexualmente por um tio durante quase metade da sua vida e que, em decorrência dos estupros, acabou por engravidar. O caso aconteceu na cidade de São Matheus, estado do Espírito Santo.

Após avaliação por equipe multidisciplinar e decisão judicial fundamentada, a criança foi encaminhada a Recife, – considerando que os profissionais do estado local do crime recusaram-se a realizar o procedimento sob alegação de a gestação já ter ultrapassado o prazo de 22 semanas – o aborto legal foi devidamente recomendado e concluído nesta segunda-feira, 17 de agosto de 2020.

Entretanto, apesar de o caso em discussão estar sob total respaldo de duas entre as três hipóteses de aborto permitidas na legislação brasileira, a interrupção da gravidez causou controvérsias de opinião e discussões acaloradas, principalmente entre alguns religiosos. Diante disto, faz-se necessário discutir mais abertamente as hipóteses de aborto legal previstas na legislação brasileira, a fim de esclarecer e informar àqueles que, talvez, desconheçam as conjunturas em que o aborto é permitido no Brasil.

Mas, afinal, o que é o aborto e o aborto legal, segundo a legislação brasileira?

Aborto é o processo de interrupção da gestação de fetos de até 22 semanas, com peso previsto de até 500 gramas – a interrupção da gestação após esse período chama-se antecipação do parto. Ele pode ocorrer de forma espontânea (natural e impunível) ou de forma induzida (provocado).

Segundo o professor Damásio de Jesus, “no sentido etimológico, aborto quer dizer privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento.”

Em regra, a prática de aborto é criminalizada no Brasil, conforme artigos 125, 126 e 127 do Código Penal, com penas que variam de 01 a 10 anos de prisão, a depender do caso concreto. Mas, existem ainda três casos em que o aborto é autorizado pela legislação brasileira, comumente conhecidos, portanto, por aborto legal.

A primeira hipótese de aborto legal permitida pela legislação brasileira é em caso de gravidez de risco à vida da gestante, denominado aborto necessário, e previsto no artigo 129, inciso I do Código Penal. Ou seja, nos casos em que a gestação oferece risco à vida da mulher é permitido realizar o aborto legal. É sempre imprescindível lembrar que o acolhimento deve oferecer atenção humanizada e o maior número possível de informações que possibilitem à mulher avaliar se deve, e se deseja, prosseguir com a gestação.

Nos casos de aborto necessário, não há idade gestacional máxima para a realização do aborto. No entanto, quanto antes for realizado o procedimento, menores serão os riscos para a mulher. Quando a gravidez representa risco à saúde da mulher, é necessário apresentar laudo médico com a opinião de dois profissionais, incluindo, sempre que possível, um especialista na doença que coloca em risco a vida da mulher. O laudo deve, ainda, conter uma descrição detalhada do quadro clínico e o seu impacto na saúde da mulher gestante, baseando a recomendação do aborto em evidências científicas.

A segunda hipótese de aborto legal permitida pela legislação brasileira é em caso de gravidez resultante de violência sexual – também denominado de aborto sentimental – conforme o artigo 129, inciso II do Código Penal. Nestes casos, o aborto é permitido até a 20ª semana de gestação, podendo ser estendido até 22 semanas contanto que o feto tenha menos de 500 gramas. Mais uma vez, importante ressaltar que quanto antes for detectada a gestação e realizado o procedimento, menores são os riscos à mulher.

Todos os documentos necessários para a realização do aborto nos casos de violência sexual serão colhidos no hospital no qual o procedimento será realizado. Basicamente, são documentos nos quais a mulher opta pelo aborto e se responsabiliza pelos fatos narrados à equipe médica enquanto verdadeiros.

Ainda são necessários um parecer técnico do médico que ateste a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual relatada e um termo que aprove o procedimento de interrupção da gravidez, conforme dispõe a Portaria MS/GM n° 1.508/2005 do Ministério da Saúde.

Uma informação muito importante nestes casos é que não é necessário apresentar ao hospital um Boletim de Ocorrência Policial, Laudo do Instituto Médico Legal ou Autorização Judicial para que seja realizado o procedimento; a realização do aborto independe de inquérito policial, denúncia ou processo penal. Mas, é recomendado que amostras do material embrionário do aborto em casos de violência sexual sejam devidamente guardadas para eventual investigação de DNA, mediante possível solicitação do Poder Judiciário.

A terceira hipótese de aborto legal permitida no Brasil decorre de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 em 2012 (ADPF 54/DF), a qual garantiu a interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo.

A interrupção da gestação ou antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia ocorre quando existe essa malformação no feto, incompatível com a vida extrauterina. A maioria dos fetos com anencefalia morrem ainda no útero, mas parte dessas gestações pode chegar até o final. Existem outros diagnósticos de anomalias fetais com inviabilidade de vida extrauterina, contudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal só permite a interrupção no caso da anencefalia; nesses outros casos, a mulher pode solicitar judicialmente, por meio de um alvará judicial, a realização do aborto.

Nos casos de anencefalia fetal, não há idade gestacional máxima para realizar o procedimento. Entretanto, após 20 ou 22 semanas de gestação, ou em caso de peso fetal maior do que 500 gramas, o procedimento deve ser realizado em hospital que possua estrutura de maternidade – forma de se garantir total segurança e amparo à mulher.

É possível diagnosticar a anencefalia fetal a partir da 12ª semana de gestação, podendo a mulher, a qualquer tempo da gravidez, decidir pela sua interrupção. Os documentos necessários para realizar a interrupção gestacional em caso de anencefalia fetal são um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia assinado por dois médicos e documento contendo o consentimento da gestante, como prevê a Resolução nº 1.989/2012 do Conselho Federal de Medicina.

Muitas pessoas têm dúvidas sobre a possibilidade de os profissionais da saúde se recusarem a realizar o procedimento de aborto, o que é plenamente possível e permitido. Isto porque é garantido aos médicos alegar a chamada objeção de consciência, que consiste no direito de recusa à realização do aborto. A objeção se baseia no direito à liberdade de pensamento, crença e consciência, direitos fundamentais garantidos constitucionalmente.

Mas é importante ressaltar que a objeção não é permitida nos casos em que não há outro profissional habilitado que possa realizar o atendimento ou nos casos em que a vida da mulher esteja em risco. Ainda em tempo, ressalta-se que nenhuma instituição médica pode alegar objeção de consciência, visto que esta é uma decisão individual de cada profissional; pelo contrário, a instituição deve garantir que haja profissionais para viabilizar o melhor e mais humanizado atendimento possível. Caso a mulher venha a ter complicações de ordem moral, física ou psicológica em decorrência da omissão do profissional ou do hospital, poderá haver responsabilização pessoal e/ou institucional.  

Bom momento para mencionar que, dentro de todo esse processo e independentemente do caso, o atendimento diferenciado, humanizado e acolhedor deve sempre prevalecer e ser prioridade, visto que a mulher já se encontra vulnerável e fragilizada o suficiente diante de uma gestação de risco ou indesejada, e precisa de suporte, apoio e informação, e não mais julgamentos.

Situações de negligência ao atendimento à mulher podem acontecer quando, por exemplo, a mulher não recebe os cuidados básicos referentes ao acolhimento: atenção humanizada, informações sobre as alternativas à gestação e sobre os procedimentos de interrupção mais indicados à sua idade gestacional, cuidados necessários no pré e pós-aborto, métodos contraceptivos pós-aborto, falta de encaminhamento a outro profissional quando há alegação de objeção de consciência, entre outros. Além disso, essas condutas caracterizam-se, também, como violência obstétrica.

Fato é que a temática aborto no Brasil divide opiniões, seja nas hipóteses permitidas por lei ou não.

À título de maiores informações, há, em pauta, ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 (ADPF 442/DF) perante o Supremo Tribunal Federal, que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. As constantes discussões sobre o tema fazem-se necessárias considerando que a Organização Mundial da Saúde assegura que, a cada ano, mais de 4 milhões de mulheres submetem-se a abortos clandestinos apenas na América Latina e, em média, 6 mil dessas mulheres morrem em decorrência do procedimento.

A professora Flávia Piovesan, que atualmente compõe a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, explica que:

O aborto figura como a 4ª causa de morte materna no Brasil, sendo sua vítima preferencial a mulher de baixa renda. A legislação repressiva-punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres de baixa renda que, destituídas de outros meios e recursos, ora são obrigadas a prosseguir na gravidez indesejada, ora sujeitam-se à prática de aborto em condições de absoluta insegurança. As mulheres que têm recursos financeiros são atendidas de modo seguro, com qualidade e sem risco para sua saúde e vida, enquanto mulheres economicamente desfavorecidas continuam a submeter-se ao aborto clandestino e inseguro.

Por esses, e tantos outros motivos e indicadores, que debater criticamente sobre o aborto é extremamente necessário no Brasil. Há que se ressaltar, porém, que a emoção e o calor do debate não devem ser protagonistas neste caso; ao contrário, é preciso entender os reflexos e consequências tanto da criminalização, quanto da descriminalização da prática de aborto, preferencialmente sob um aspecto sociológico, livre de demagogias ou ideologias, priorizando a vida, a saúde e os direitos fundamentais e reprodutivos de milhões de mulheres.

Apenas através de um debate plural, horizontal e racional será possível propor soluções competentes que visem e, efetivamente protejam, as mulheres em todos os casos, visto que a gestação, e tão somente a gestação, desejada ou não, já representa um imensurável desafio para toda e qualquer mulher.

Referências:

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: https://bit.ly/3aAB5Nh.

BRASIL. Política Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres. Secretaria de Política para as mulheres. Brasília, 2011. Disponível em: https://bit.ly/3kXhYC4.

BRASIL. Portaria nº 1.508 de 1º de Setembro de 2005. Disponível em: https://bit.ly/2YeGAMG.

BRASIL. Resolução nº 1.989 de 14 de maio de 2012 do Conselho Federal de Medicina. Disponível em: https://bit.ly/317b9G9.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Brasília, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2Q2YLAD.

______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade. Brasília, 2017. Disponível em: https://bit.ly/346i18C.

JESUS, Damásio de. Direito Penal, 2º volume: parte especial; Crimes contra a pessoa a crimes contra o patrimônio. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Leituras de Direito: violência doméstica e familiar contra a mulher. Orgs: Cornélio Alves; Deyvis de Oliveira Marques. Natal: TJRN, 2017. Disponível em: https://bit.ly/2E2GwZG.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistema de saúde. 2ª ed. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3kWiq3y.

______. OMS: proibição não reduz número de abortos e aumenta procedimentos inseguros. 2017. Disponível em: https://bit.ly/2Q5UdJE.

PIOVESAN, Flávia. Nos limites da Vida: clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

______. Código de Direito Internacional de Direitos Humanos Anotado. São Paulo: DPJ Editora, 2008.


[1] Advogada especialista em Direito das Mulheres e Direito Penal e Processual Penal Aplicados. Ativista e idealizadora do projeto Advogando por Elas. Pesquisadora em Ciências da Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais.

Ilustradora: Giada Fiorindi.

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