O silêncio dos (que se dizem) inocentes: como a omissão alimenta a violência contra as mulheres.

por Carla Viana[1]

Um ditado muito popular diz que “quem cala, consente”. Porém, dentro desta máxima folclórica, podemos extrair diversas perspectivas à luz da legislação brasileira, sendo que em alguns momentos a expressão apresenta-se como verdadeira e, em outros, como falsa.

Explico.

A Constituição Federal de 1988 garante, em seu artigo 5º, inciso LXIII, o direito ao silêncio[2] do acusado no processo penal, de forma que esta inércia e escolha pela omissão quanto ao seu depoimento pessoal e sua particular versão dos fatos não pode – e não deve! – lhe prejudicar ao longo do processo e muito menos servir para fundamentar uma decisão condenatória, por exemplo. A decisão judicial deve, obrigatoriamente, estar pautada em provas suficientes para além da dúvida razoável. Esta ideia parte de um princípio oriundo do latim “nemo tenetur se detegere”, ou seja: ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Aqui, de fato, o silêncio não significa absolutamente nada.

Por outro lado, a depender do caso, a inércia diante de uma ilegalidade ou do “dever” de se evitar que esta ilegalidade venha a se consumir, pode ser considerada tão grave quanto o próprio ato criminoso. De acordo com o artigo 13, § 2º do Código Penal, a omissão é penalmente relevante quando a pessoa devia e podia agir para evitar o resultado danoso, mas não o faz. Podemos citar, a título de melhor exemplo, os pais responsáveis pela segurança e proteção dos filhos que se omitem diante da suspeita ou constatação de que estejam sofrendo abusos sexuais ou violações aos seus direitos infantis, ou ainda um policial que, durante o seu dia folga, presencia a prática um crime qualquer sem intervir ou prestar devido auxílio à vítima.

Nestes casos, as pessoas omitentes respondem na mesma medida daquele que praticou a conduta criminosa; ou seja, a mãe que sabe que a filha está sendo violentada pelo padrasto e nada faz a respeito responde pelo próprio crime de estupro de vulnerável, assim como o estuprador.[3]

Percebem a gravidade?

E por que, afinal, é tão importante sabermos de informações como essas?

Simples: porque a omissão diante de situações de violência deveria ser tão intolerada por nós quanto a própria violência. E aqui peço licença para incorporar outra máxima popularmente atribuída a Martin Luther King – mas que gera controvérsias quanto à  possível autoria ser, em verdade, do filósofo Martin Heidegger – a qual diz: “o que me preocupa não é o grito dos maus; é o silêncio dos bons.”

Não é raro observarmos nas redes sociais, nas conversas dominicais em família, nas mesas de bar e nas rodas de amigos, pessoas dizendo o quanto são favoráveis a leis mais severas, punições extremas, penas de morte e diversas outras pseudo soluções para problemas estruturais como a violência contra as mulheres.

Quantas vezes você já ouviu alguém – principalmente homens – se declarar favorável à pena de morte para estupradores e feminicidas? Ou desejar prisão perpétua àqueles que praticam violência doméstica e familiar contra a mulher? Ou defender punições como a castração química? Tenho certeza de que foram mais vezes do que é possível contar nos dedos de uma única mão.

Ao mesmo tempo, pergunto: quantas vezes você já presenciou um homem insurgindo-se contra outro homem diante de um comentário machista, sexista e/ou misógino? Quantas vezes você viu um homem rechaçar outro homem na mesa de bar porque este desrespeitou alguma mulher presente, forçou um beijo indesejado, a tratou como objeto, a ofendeu depois de ser rejeitado?

Sim, eu sei. É desesperador pensar nisso. Mas é necessário, então não desista aqui, me dá a mão e vem comigo porque é muito importante refletirmos sobre isso juntas!

Uma pesquisa divulgada pela ONU e realizada pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, 2020), feita em 75 países onde vivem o correspondente a 80% da população do planeta, mostrou que 91% dos homens e – pasmem! – 86% das mulheres têm restrições ou algum tipo de preconceito contra a mulher em relação à política, economia, educação, violência e direitos reprodutivos.[4] Quase metade dos homens e mulheres entrevistados consideram o homem superior como líder político e 40% julgam que os homens são executivos/CEOs melhores do que as mulheres. O absurdo não para por aí: cerca de 30% dos entrevistados de ambos os sexos acham aceitável o homem bater na esposa ou companheira.

Esses resultados nos levam ao primeiro questionamento: o que seria capaz de justificar tamanha aversão pelas mulheres e pelos valores femininos?

Sigamos.

Outro estudo realizado pelo departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB) analisou uma série de materiais compartilhados dentro de grupos de WhatsApp exclusivamente masculinos.[5]

A pesquisa foi realizada com a ajuda de seis homens “espiões”, entre eles brancos e negros, de diferentes faixas etárias e estados brasileiros, das classes média ou média alta, que se ofereceram para enviar prints do que era compartilhado nos grupos de WhatsApp masculinos dos quais participavam, durante períodos de dois a seis meses.

Dentre os conteúdos identificados, a grande maioria refere-se a fotos e vídeos de mulheres, conteúdos pornográficos, “memes” e piadas machistas e misóginas, discursos de ódio contra as mulheres e, para completar o “combo do horror”, mensagens de gordofobia, racismo e etarismo.[6] Percebe-se que a objetificação das mulheres é algo (infelizmente) muito comum no universo masculino, de forma que estes comportamentos retiram a humanidade das mulheres, transformando-as em uma “coisa”, um mero “objeto” e não em um sujeito digno de respeito – assim como os homens.

Os voluntários do estudo apresentavam apenas o conteúdo compartilhado, sem identificar o nome de quem o enviou e, segundo a professora e pesquisadora Valeska Zanello (autora do estudo), foi possível constatar uma enorme preocupação dos voluntários em não identificar os participantes do grupo.

A pesquisa destacou, ainda, que o “silêncio cúmplice” é um comportamento tipicamente masculino, visto que eles dependem da aprovação dos outros homens para construir e afirmar sua masculinidade. Ou seja, isso significa dizer que mesmo diante de situações de violência ou episódios desconfortáveis para os homens, eles escolhem o silêncio da cumplicidade e a aprovação dos outros pares, ainda que isso ofenda, massacre ou viole os direitos e a humanidade das mulheres.

Recentemente, veio a público um vídeo[7] extraído de uma live promovida pelo blog Soul Santista em que quatro homens (sendo um, inclusive, conselheiro do clube) debatiam sobre o futebol feminino. Um deles, sem qualquer tipo de hesitação, afirma de maneira muito violenta que o futebol feminino “é um lixo”, que merece “receber porrada”, entre muitos outros absurdos que sequer tenho coragem de reproduzir aqui. Quanto aos demais homens presentes, posso afirmar com bastante segurança que foi o que mais me assustou: em todos eles, um misto de silêncio, riso contido e deboche.

Mais uma vez, obrigo-me a questionar: o que sustenta comportamentos tão violentos contra as mulheres? O que pode ser capaz de explicar tanto ódio, humilhação e objetificação contra elas e contra seus corpos?

A misoginia construída estruturalmente pelo patriarcado melhor explica.

Originária da união entre os termos gregos “miseo” e “gyne”, cujos significados são, respectivamente, ódio e mulheres, a palavra misoginia é usada para definir sentimentos de aversão, repulsa e/ou desprezo pelas mulheres e pelos valores femininos.

A misoginia é, portanto, um sentimento patológico de aversão pelo que é feminino e que se traduz em uma prática comportamental essencialmente machista, cujas opiniões e atitudes visam o estabelecimento e a manutenção das desigualdades e da hierarquia entre os gêneros, corroborando à crença de superioridade do poder e da figura masculina pregada pelo machismo e pelo patriarcado.

Em um primeiro momento, pode-se parecer extremo ou radical falar sobre “ódio às mulheres”, mas, se observarmos com cuidado, esses sentimentos são facilmente identificáveis no comportamento humano, principalmente no comportamento masculino. Basta observarmos quem são os referenciais escolhidos pela sociedade: representantes políticos, ídolos do esporte, autores prestigiados e demais pessoas vistas como “dignas” de serem apreciadas e respeitadas.

Homens admiram homens, imitam homens, compactuam com homens, protegem homens e, na maioria esmagadora das vezes, lembram-se das mulheres apenas para o sexo, para a sexualidade, para a objetificação e para o deboche.

Podemos observar, ainda, a forma como os homens fora desse padrão de masculinidade hegemônica são tratados: homens sensíveis, homens que choram, homens que praticam o autocuidado e o respeito ao próximo são imediatamente tratados como se homossexuais fossem, reforçando o estereótipo de que sensibilidade e masculinidade não combinam e, pior, não são dignos de respeito dentro do universo masculino.

Infelizmente, não há como combater e ressignificar o papel da mulher na sociedade e o respeito à sua dignidade humana sem que dialoguemos sobre o significado da misoginia e o consequente tratamento violento conferido às mulheres em decorrência dessa construção cultural.

É preciso que dialoguemos ainda, e com a mesma intensidade, sobre a necessidade de nos posicionarmos diante de situações de violência não somente contra as mulheres, mas contra todos os grupos estruturalmente vulnerabilizados e marginalizados pelos mais diversos marcadores sociais, quais sejam: identidade de gênero, raça, cor, etnia, religiosidade, orientação sexual, classe social e muitos outros que, ao serem estigmatizados pelos padrões de existência eurocêntrico, fomentam desigualdades e violências, inclusive, intragênero – ou seja, entre as próprias mulheres.

A omissão diante das mais variadas formas de violência contra as mulheres valida o ato e naturaliza a desumanização de nossa existência. Não se posicionar significa, por si só, adotar uma posição que em nada contribui para o crescimento e a evolução da sociedade em que vivemos. Escolha o lado certo e não deixe confortável quem se sente no direito de ridicularizar, diminuir e menosprezar as infinitas nuances e belezas do universo feminino.


[1] Advogada especialista em Direitos das Mulheres, pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Aplicados e em Direito Público, pesquisadora em ciências da educação pelo Instituto Federal de Minas Gerais e coordenadora do grupo de estudos “Gênero e Violência”. Feminista ativista pelos direitos das mulheres e de pessoas em situação de vulnerabilidade. E-mail: carla.viana@adv.oabsp.org.br. Instagram: @carlaviana_adv.

[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

[3] Art. 13 O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.

[4] Acesse o estudo em: https://bit.ly/36LT3f4.

[5] Acesse o estudo em: https://bit.ly/2YL7vj9.

[6] Etarismo, discriminação etária, discriminação generacional, etaísmo ou idadismo é um tipo de discriminação contra pessoas ou grupos baseado na idade. Advém de estereótipos que fazem parte da construção da sociedade referentes à saúde, à capacidade e empenho, à idade, fragilidade, entre outros.

[7] Para conferir o conteúdo do vídeo, acesse https://www.instagram.com/p/CK1l8CTjCTf/.

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