A fiscalização do Poder Público como forma de garantir nossos direitos.

por Carla Viana[1]

Compromisso Inegociável | Think Eva

Imagem do Banner: Think Eva

É inegável que março é um mês de muita importância a todas as mulheres, momento em que relembramos as lutas daquelas que vieram antes de nós e pavimentaram a nossa estrada. Dar vida a essas memórias não é apenas uma questão de honra às mulheres que, de algum modo, batalharam para que tivéssemos voz, mas também se apresenta como fonte de energia para que possamos – e consigamos! – seguir, apesar de todos os pesares que nos cercam.

A verdade é que essas lutas e vitórias precedentes nos proporcionaram a possibilidade de ocuparmos espaços que, há muito, nos foram negados ou negligenciados. Um exemplo disso é o nosso sufrágio universal – ou seja, o direito de votar e ser votada – e todas as responsabilidades dele decorrentes. Afinal, grandes conquistas serão sempre acompanhadas de grandes responsabilidades, e é sobre isso que eu gostaria de refletir com você hoje.

Como já é sabido, fazemos parte de uma sociedade democrática e a nossa Constituição Federal, logo em seu artigo 1.º, diz que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”. Ou seja, faz parte do exercício de nossa cidadania acompanharmos a gestão operada por nossos parlamentares e, sobretudo, é a forma mais eficaz de garantirmos representatividade nas pautas que são de nosso interesse.

É de suma importância ressaltar que o ativo exercício do controle social – ou seja, a fiscalização, o monitoramento e o controle das ações da Administração Pública – fortalece a cidadania e o elo entre Estado e sociedade.

Existem muitas maneiras de colocarmos em prática o nosso controle social para acompanharmos em quais projetos os nossos representantes têm dedicado sua energia, ainda que não tenham sido a nossa opção de voto no momento das eleições. Com a ascensão da tecnologia e das redes sociais, é possível acompanhar o trabalho desenvolvido sem muitas dificuldades.

Eu sempre digo que informação é poder e, neste caso, conhecer as funções desempenhadas pelos nossos governantes é essencial para que sejamos capazes de supervisionar e cobrar.

Os governadores, por exemplo, são os chefes do Poder Executivo Estadual e são responsáveis por questões como a segurança pública, a educação, a saúde, a infraestrutura e o orçamento dentro da sua esfera de poder, ou seja, o estado. Já os prefeitos são responsáveis pela gestão dos municípios e por assegurar que os recursos das cidades sejam aplicados de forma correta a garantir o bom funcionamento dos serviços essenciais, bem como precisam pensar em novas políticas públicas que proporcionem melhoria na vida da população. O trabalho do prefeito deve ser fiscalizado pelos vereadores, e o do governador, pelos Deputados – representantes da população dentro da esfera Legislativa, ou seja, a esfera responsável pela criação/alteração das nossas leis.

Vale ainda dizer que, apesar de muitas vezes negligenciadas pela própria comunidade, as políticas locais (criadas pelo estado e município) são extremamente importantes para atender as necessidades básicas do nosso dia a dia, as quais impactam (mais) diretamente a nossa vida como, por exemplo, o transporte público e o sistema de saúde.

Ou seja, existe uma atuação pública “em rede” para que todas as necessidades da população sejam corretamente atendidas. A questão é: será que, de fato, isso tem sido observado por nossos parlamentares? Quais são as prioridades dos representantes da sua cidade ou estado? Você tem acompanhado se os seus direitos e garantias estão sendo assegurados e considerados por aqueles que, inevitavelmente, te representam?

Porque sim, o que acontece na sociedade é um problema todo nosso.

Dito tudo isso, gostaria de compartilhar com vocês uma notícia que me deixou particularmente muito incomodada e a qual reflete exatamente o que eu desejo dizer ao ressaltar a importância de acompanharmos o trabalho dos gestores públicos e sempre analisarmos quais são as suas prioridades ao longo do seu mandato.

Em um destes meus atos de “fiscalização”, me deparei com a propositura do Projeto de Lei n.º 355 de 2019, fruto de uma improvável união entre deputadas(os) de partidos políticos com espectros bem diversos, mas com consciência sobre a importância do tema e que buscaram, através deste projeto, garantir a obrigatoriedade de leitos ou ala separada para as mães de feto natimorto e/ou mães com óbito fetal nas redes públicas e privadas de Saúde.

Imagem: Adriana de Góes Soligo – Reprodução Humana

É fundamental destacar que a proposta era bem simples e não exigia nenhum investimento extra no orçamento público, mas tão somente a garantia de que o luto maternal seria tratado com humanidade e com a atenção especial que o momento exige.

Talvez você não saiba, mas atualmente a ala obstétrica dos hospitais abarcam o atendimento de todas as mulheres, o que inclui aquela mulher em alegria extrema por uma gravidez (ou parto) segura e saudável, mas também aquela mulher em profunda tristeza e depressão em razão da morte do nascituro/feto. Ou seja, isso significa dizer que no mesmo ambiente temos mulheres em trabalho de parto reunidas com mulheres que se encontram com seus bebês sem vida (intraútero), e ainda mulheres que já passaram pelo parto para retirada de seu bebê falecido.

Há de se ressaltar que o aborto espontâneo é uma fatalidade muito comum que acomete de 15% a 25% das mulheres que engravidam, segundo dados compartilhados pelo Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia.[2] Já a prevalência de natimortos no Brasil foi de 14,82 a cada 1.000 nascimentos, com grande variação de acordo com a região do país e uma prevalência mais alta entre as mais precárias.[3]

 Perder um filho é uma experiência traumatizante e insuperável, e proporcionar uma atendimento humanizado às mulheres que estão atravessando esse luto não é apenas uma questão de saúde pública, mas sim, e principalmente, de sensibilidade.

Infelizmente, o projeto foi vetado pelo governador de São Paulo no último dia 10, sob a justificativa de que “a Portaria nº 2.068/2016 institui diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada à mulher e ao recém-nascido no Alojamento Conjunto” (supostamente já garantindo o leito especial em questão), e de que “a propositura intervém em área reservada ao domínio do Poder Executivo e não guarda conformidade com as diretrizes constitucionais que regem o SUS”.[4]

Tais justificativas pouco se sustentam, visto que “portaria” não é lei, e é conceituada como “um documento de ato administrativo de qualquer autoridade pública, que contém instruções acerca da aplicação de leis ou regulamentos, recomendações de caráter geral, normas de execução de serviço, nomeações, demissões, punições, ou qualquer outra determinação da sua competência”, podendo, inclusive, ser alterada pela autoridade pública a qualquer tempo, sem que haja qualquer garantia jurídica sobre o tema versado.

Ademais, ao contrário do que diz o texto do veto, não se trata de área reservada ao Poder Executivo, visto que a competência legislativa em relação às questões de saúde pública são concorrentes entre União, Estados e Distrito Federal, sendo plenamente possível que os Deputados Estaduais apresentem propostas legislativas sobre o tema em questão, conforme diz o artigo 24, inciso XII da Constituição Federal.[5]

Em resumo, trata-se de mais uma decisão infundada que deixa mulheres desamparadas, principalmente aquelas em situação de maior vulnerabilidade que se utilizam do sistema de saúde público, já usualmente sobrecarregado e carente de investimentos e infraestrutura adequados.

Este é apenas um exemplo entre muitos que poderíamos citar e que refletem a negligência ofertada diariamente aos direitos dos mais vulneráveis e, é claro, das mulheres. Portanto, aproveitemos este movimento trazido pelo mês das mulheres para exercitarmos a nossa cidadania e reforçarmos o nosso olhar sobre os atos da Administração Pública, evitando que decisões como a aqui mencionada venham a se repetir. O que acontece ao nosso redor é, sim, problema nosso e a única forma de transformarmos o espaço público em um lugar digno de se viver é metendo a nossa colher em todos os lugares e fazendo muito barulho!

Força!

Feliz março! Feliz Dia Internacional das Mulheres.


[1] Advogada especialista em Direitos das Mulheres, pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Aplicados e em Direito Público, pesquisadora em ciências da educação pelo Instituto Federal de Minas Gerais e coordenadora do núcleo de estudos “Gênero e Violência” da LAJUMG (PUC-MG). Feminista ativista pelos direitos das mulheres e de pessoas em situação de vulnerabilidade. E-mail: carla.viana@adv.oabsp.org.br. Site: carlaviana.info. Instagram: @carlaviana_adv.

[2] Acesse o estudo em: https://ipgo.com.br/abortos/.

[3] Acesse o estudo em: https://bit.ly/3ln4uju.

[4] Para ver a movimentação legislativa na íntegra, acesse: https://bit.ly/3eL7WTO.

[5] Artigo 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII – previdência social, proteção e defesa da saúde”.

Compartilhe:

2 thoughts on “A fiscalização do Poder Público como forma de garantir nossos direitos.

Deixe um comentário