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SORORIDADE: O OXIGÊNIO FEMINISTA E A ESPERANÇA PARA 2021.

Eis que um novo ano chega, se acomoda e traz consigo novas possibilidades para todos, mas principalmente para nós, mulheres. Nós, que fomos alvo dos mais variados prejuízos elencados no ano de 2020.

Diversas pesquisas indicam que as mulheres foram as mais afetadas pela pandemia mundial ocasionada pelo novo coronavírus (covid-19) como, a título de melhor exemplo, o crescimento dos índices de desemprego, o acúmulo das jornadas invisíveis que lhe são atribuídas culturalmente e o agressivo aumento nos casos de violência doméstica – com, inclusive, registro da ocorrência de 6 (!) feminicídios na noite de Natal.

Não. Não foi um ano fácil. Mas qual ano foi fácil para as mulheres durante a construção da história da humanidade, não é mesmo?!

Diante de tantas intempéries, a ideia de fragmentar o tempo com o intuito encerrar e recomeçar ciclos demonstra ser não somente a melhor, como a mais necessária às nossas esperanças. E, junto com essa (sin)energia de renovação proporcionada pela divisão dos dias no calendário, vale pensar um pouco, também, em nossas (pequenas e grandes) vitórias.

A luta pela emancipação feminina e maior ocupação dos espaços sociais avançou muito, ainda que em linhas práticas demonstre-se insuficiente. Estudos apresentaram, nos últimos anos, dados que indicam retrocesso no que se refere ao fim da desigualdade de gênero no mundo, reverberando, como consequência, diretamente no exercício do direito fundamental à liberdade e desenvolvimento social, econômico, cultural, político e social das mulheres. Outras pesquisas mais recentes indicam, outrossim, que grande parte dos impactos negativos causados pela pandemia, a longo prazo, refletir-se-ão sobre as mulheres ao redor do mundo, principalmente as mais vulneráveis e/ou que se encontram na base da pirâmide social.

Mas, “nem tudo são dores”.

Mesmo diante deste ano desastroso, ainda existem fatos e flores a se comemorar. Isto porque parte dos avanços conquistados através das lutas de mulheres ao redor do mundo no ano de 2020 serão sentidos, essencialmente, nos anos subsequentes. E isso, por si só, com certeza é motivo suficiente para encher nossos pulmões com o mais puro oxigênio da força feminina.

Te convido a relembrar, reconhecer ou conhecer alguns fatos do último ano que são importantíssimos para o avanço do reconhecimento da dignidade feminina e dos direitos das mulheres.

Podemos começar dizendo que 2020 foi um ano especialmente importante para a luta feminista das mulheres chilenas que conquistaram, pela primeira vez na história do país, uma Constituição igualitária e que substituirá o texto que se encontra em vigor desde a ditadura de Pinochet. A promotora de justiça e professora Silvia Chakian, em sua coluna na revista Marie Claire, edição do mês de dezembro, disse que “as mulheres chilenas têm tudo para escrever a página mais inspiradora na história da conquista de direitos não só no Chile, mas em todo o mundo” e complementou dizendo que para nós, brasileiras, “ao final deste ano de crises sem precedentes, ficam o exemplo de luta e a esperança de que nossas hermanas tenham razão quando bradam que ‘a América Latina será toda feminista.’”

Inegavelmente, um sopro de esperança e inspiração.

Na Escócia, foi aprovada uma lei, promovida por uma coalizão de sindicatos e organizações feministas, determinando que todos os produtos de higiene menstrual sejam fornecidos gratuitamente às mulheres do país. Trata-se de uma medida extremamente importante no combate à chamada “pobreza ou precariedade menstrual”, problema que atinge milhões de mulheres e meninas ao redor do mundo, as quais enfrentam inúmeras dificuldades durante o seu período menstrual que vão de acesso a produtos de higiene básica (como absorventes) e saneamento básico (acesso à água), até a ausência de educação adequada e de qualidade para lidar com a menstruação – ainda tratada como tabu em diversas sociedades.

Dando sequência à temática saúde das mulheres, podemos lembrar também da legalização do aborto até a 14ª semana de gestação na Argentina às vésperas do ano novo, país que, através desta decisão, torna-se a maior nação da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez, permitida também no Uruguai, em Cuba, na Guiana e na Cidade do México.

Na Polônia, um verdadeiro terremoto feminista insurgiu-se contra uma decisão do Tribunal Constitucional que declarou ser inconstitucional (e, consequentemente, não permitido) o aborto mesmo nos casos de má-formação grave e irreversível do feto. As mulheres atraíram toda a sociedade civil polaca para os protestos, obrigando o governo a adiar a implementação do novo entendimento constitucional.

Em terras africanas, entrou em vigor uma lei no Sudão que criminaliza a prática de mutilação genital feminina. Em que pese a lei, por si só, não coloque um ponto final nesta prática, sua aprovação indica o início de uma importante discussão e o posicionamento de oposição do Estado em relação a essa cruel violência que, segundo dados da Unicef, já atingiu pelo menos 87% das mulheres do país.

No que se refere aos impactos sociais, vale recordar que um dos maiores protestos pelo valor das vidas negras e contra a violência e o racismo no ano de 2020 foi encabeçado por nada menos do que três mulheres negras. Segundo o site do movimento, “Black Lives Matter é uma intervenção política e ideológica em um mundo onde vidas negras são sistemática e intencionalmente desaparecidas. É uma afirmação da humanidade das pessoas negras, da nossa contribuição para a sociedade, da nossa resiliência em face dessa opressão fatal.” As mulheres responsáveis pela liderança do BLM – Alicia Garza, Patrisse Khan-Cullors e Opal Tometi – atuam em diversas frentes sociais e, através do BLM, tornaram-se vozes fundamentais na grande mídia pela luta antirracismo e em defesa pelo reconhecimento da humanidade das pessoas negras.

Nos Estados Unidos, a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais trouxe consigo a vice-presidente Kamala Harris: não apenas a primeira mulher a ocupar o cargo de vice, mas também a primeira mulher negra e de origem indiana eleita para tanto. Além disso, houve também a nomeação de Avril Haines como chefe de inteligência, a qual irá liderar o grupo de 17 agências que compõem o serviço secreto dos Estados Unidos.

A Bolívia tem, pela primeira vez na história, um Ministério da Cultura, Descolonização e Despatriarcalização liderado por um indígena de etnia quíchua, Sabina Orellana Cruz – feminista e ativista da história da Confederação Nacional das Mulheres Camponesas. Orellana prometeu trabalhar para construir “uma pátria descolonizada e despatriarcal”, devolvendo o orgulho não só aos povos indígenas, mas também às mulheres.

Na Espanha, foi publicado um decreto que endurece as regras sobre a discriminação salarial por gênero e exige que as empresas acabem com as diferenças em suas equipes. Segundo a Ministra da Igualdade do país, Irene Montero, a regra é bem simples: as mulheres têm que receber o mesmo que os homens para fazer o mesmo trabalho. De fato, a regra é tão simples que chega a ser difícil acreditar que a diferença salarial de gênero no mundo chegue a ser de 30% de prejuízo às mulheres que ocupam mesmo cargo que os homens! É justamente por absurdos como esses (ainda) existirem que é tão importante estarmos atentas – e comemorarmos, é claro! – medidas como a adotada pela Espanha.

A lição oculta presente em todas essas vitórias e mudanças alcançadas pela luta feminina ao longo de 2020 pode ser resumida no discurso de Audre Lorde, que nos ensinou muito ao dizer: “não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.” Em outras palavras, isso significa dizer que nenhum dos avanços descritos até aqui seriam possíveis sem a união de muitas mulheres dispostas a fazer diferente, mesmo diante de suas próprias diferenças.

Talvez, a grande saída para uma efetiva mudança social, e que é tão cara e necessária à vida das mulheres, esteja na prática diária da famigerada (porém, por vezes incompreendida) sororidade, ou seja: a aliança entre mulheres na busca de objetivos em comum; a solidariedade e fraternidade entre as mulheres em todas as suas formas, mas principalmente na defesa, umas das outras, contra as violências diárias que sofremos pelos quatro cantos do mundo; uma forma de fortificar e robustecer as relações entre as mulheres que, não raramente, caem nas armadilhas do patriarcado e colocam-se em ataque contra seus próprios pares.

Que 2021 traga saúde, vacina, paz e prosperidade. E que nós, em coletividade e unicidade, sejamos capazes de praticar a sororidade neste mundo que tanto nos tenta colocar como rivais quando, na verdade, tudo o que precisamos fazer é fortalecer, juntas, nossas próprias trincheiras de guerra – umas pelas outras, indistintamente.

Referências:

BBC News BR. Escócia se torna primeiro país do mundo a oferecer absorventes e tampões de graça. Acesse em: https://bbc.in/3s56uQp.

BBC News BR. Argentina aprova legalização do aborto: em que países da América Latina o procedimento já é legal. https://bbc.in/3q3IT0Q.

BBC News BR. Eleições nos EUA 2020: Quem é Kamala Harris, a primeira mulher negra eleita vice-presidente dos Estados Unidos. Acesse em: https://bbc.in/2JX1jki.

El País BR. Uma Constituição com perspectiva de gênero no país. Acesse em: https://bit.ly/2Xn68qn.

El País BR. Polônia declara inconstitucional o aborto por malformação fetal: decisão afeta 97% das interrupções de gravidez praticadas no país. Acesse em: https://bit.ly/2JWBhxy.

El País BR. Mulheres enfrentam alta de feminicídios no Brasil da pandemia e o machismo estrutural das instituições. Acesse em: https://bit.ly/2XheRdu.

Exame. Governo da Espanha proíbe salários diferentes para homens e mulheres. Acesse em: https://bit.ly/3nuPS0Z.

Faculdade de Medicina UFMG. Mulheres são as mais prejudicadas pela pandemia: sobrecarga e violência contra as mulheres aumentaram neste período. Acesse em: https://bit.ly/3bqD09J.

G1 Economia. Desigualdade de gênero no trabalho só acabará daqui a 257 anos, aponta Fórum Econômico Mundial. Acesse em: https://glo.bo/3s55r2V.

G1 Mundo. Sudão criminaliza mutilação genital feminina. Acesse em: https://glo.bo/3nuPgZf.

Geledés. “Black Lives Matter”: As três mulheres negras por trás do movimento contra o racismo. Acesse em: https://bit.ly/3ot0UFt.

Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva. Violência doméstica contra a mulher na pandemia. Acesse em: https:// bit.ly/3q26AGu.

Los Tiempos. Sabina Orellana Cruz es la nueva Ministra de Culturas, Descolonización y Despatriarcalización. Acesse em: https://bit.ly/3q73b9J.

Marie Claire. A esperança vem do Chile, que terá a primeira Constituinte paritária do mundo. Acesse em: https://glo.bo/38uirYh.

ONU News. Mutilação genital prejudica mulheres e economias. Acesse em: https://bit.ly/2XogaY7.

Uol Economia. Mulheres são mais afetadas na pandemia com desemprego e acúmulo de tarefas. Acesse em: https://bit.ly/2XlpHPP.

Valor Econômico. IBGE: Salário médio das mulheres corresponde a 79,5% ao dos homens. Acesse em: https://glo.bo/38pJ6Fo.

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